quinta-feira, 30 de outubro de 2008

Humanizar a humanidade praticando a proximidade (Pedro Casaldáliga)



Comunicação de Pedro Casaldáliga
na recepção do Premi Internacional Catalunya 2006.
Benvolgut President de la Generalitat, Pasqual Maragall, el meu President.
Benvolguda Sra. Diana Garrigosa.
Benvolguda comitiva de la Presidència i del Jurat del Premi Internacional
de la meva Catalunya.

Querido irmão Leonardo.
Queridas irmãs e irmãos.
É muita deferência do Governo da Catalunha e do júri vir até São Félix do Araguaia para entregar-me o seu Prêmio Internacional. Eu fico constrangido, por isso e porque este Prêmio está associado a personagens extraordinárias da filosofia, da ciência, das artes, da promoção social. E eu continuo a ser um “fill de Cal Lleter”, um “filho da casa do leiteiro”, de Balsareny, à beira do Llobregat, um córrego nanico posto ao lado deste Araguaia majestoso.

Esta deferência da Generalitat é motivo a mais para minha gratidão, recebendo o Prêmio, e para renovar na velhice a identidade catalã com os seus carismas. “Quan més anem, més tornem”: avançando na vida, a gente regressa às origens; o arco das vivências se fecha em paz. Novo motivo também para reassumir as causas pelas quais, diz o júri, me outorgam, nos outorgam, este galardão singular.

As causas dos direitos das pessoas e dos povos, sobretudo das pessoas e povos marginalizados e até proibidos. Causas minhas, mas causas de todos nós, causas desta pequena igreja de São Félix do Araguaia, que por elas já deu suor e até sangue. Causas especificamente da Nossa América: a terra, a água, a ecologia; as nações indígenas; o povo negro; a solidariedade; a verdadeira integração continental; a erradicação de toda marginalização, de todo imperialismo, de todo colonialismo; o diálogo inter-religioso e inter-cultural; a superação desse estado de esquizofrenia humana que é a existência de um primeiro mundo e um terceiro mundo (e um quarto mundo também) quando somos um só mundo, a grande família humana, filha do Deus da vida.

Sendo a primeira vez que se outorga o Prêmio a um morador da América Latina, eu, abusando de ousadia sentimental, faço questão de recebê-lo também como “representante adotivo” da Nossa América. Meu vizinho de Verdú, São Pedro Claver, apóstolo dos negros na Colômbia, e meu vizinho de Sallent, Santo Antônio Maria Claret, fundador da minha congregação e arcebispo de Santiago de Cuba, abençoarão sem dúvida esta ousadia.

Nós, como Igreja, logicamente, abraçamos essas causas à luz da fé cristã, no encalço de Jesus de Nazaré e do seu Evangelho: o Evangelho dos pobres, o Evangelho da libertação.

O Premi Internacional Catalunya 2006 é nosso, povo meu da Prelazia de São Félix do Araguaia, nossa é a gratidão à Generalitat, nosso deve ser o renovado compromisso. A dança maior da Catalunha é a sardana, ciranda em comunhão de um povo inteiro dando-se as mãos. Na Prelazia, a coresponsabilidade é a nossa dança de celebração e de compromisso. Juntos temos lutado, juntos recebemos o Prêmio, juntos seguiremos respondendo.

O objetivo e a mediação de todas essas causas nossas podem-se formular neste postulado: Humanizar a Humanidade, praticando a proximidade. É uma utopia?. O Evangelho é uma utopia maior!. Adaptando a palavra do poeta, intitulei assim a minha última circular: “Utopia necessária como o pão de cada dia”. Não a utopia quimérica que aportaria a um “não-lugar”, mas um processo esperançado que navega para um “lugar-outro”, um “bom-lugar”, eu-topia! Porque não aceitamos a fatalidade desse sistema de capitalismo neoliberal que nos impõem, feita mercado a vida, quadradas as cabeças num pensamento único, sob um macro-imperialismo político, econômico, militar,
cultural.

“É preciso reinventar uma economia da convivência”, pedia Edgar Morin, recebendo este mesmo Prêmio em 1994. O povo guarani fala da “economia da reciprocidade”. E o pequeno povo myky, neste Mato Grosso, proclama como um de seus dogmas fundantes que “viver é conviver”. Sem prepotências, sem exclusões. Todas e todos sendo reconhecidos como gente na radical dignidade da “raça humana”. Os povos indígenas, normalmente, em sua autodenominação se classificam como “gente”, “humanidade”; depois vem o sobrenome, a designação particular de cada povo, de cada cultura, de cada história. Identidades coletivas que configuram a Humanidade una e plural. A globalização atual, com todos os seus pecados, graves, tem por contrapartida a virtude de fazer que hoje, como nunca, a Humanidade se sinta “una”. Estamos descobrindo, por necessidade, que navegamos no mesmo barco. “O choque de civilizações” ou “a aliança de civilizações” são a alternativa inevitável. Como agora nos encontramos todos com todos, devemos optar ou por chocar uns contra os outros, na intolerância e na agressão, ou por nos abraçarmos na compreensão e na complementaridade.

“As nações são conteúdos, não fronteiras” afirma Baltasar Porcel, na apresentação dos discursos dos galardoados com o Premi Internacional Catalunya. Muros, “vallas”, cercas, leis de intolerância, não são a solução humana. Os “bárbaros do sul” acabarão rompendo as fronteiras da separação. “A fome não tem fronteiras”, gritava o sobrevivente de uma “patera” africana. Esses novos bárbaros acabarão invadindo o chão, a casa, a mesa, a alma dos privilegiados de um mundo primeiro: primeiro em esbanjamento; primeiro em insensibilidade?

A mais essencial tarefa da Humanidade é a tarefa de se humanizar. Humanizar a Humanidade é a missão de todos, de todas, de cada um e cada uma de nós. A ciência, a técnica, o progresso, somente são dignos do nosso pensamento e das nossas mãos se nos humanizam mais. Frente a certos alardeados progressos, as estatísticas anuais desse profeta laico que é o PNUD deveriam provocar em nós uma indignada vergonha.

“Outro mundo é possível”, proclamam os fóruns da alternatividade. Outro mundo é necessário. “Tornar real o possível” é o título do último livro do economista e educador Marcos Arruda: “Uma reflexão criativa e propositiva sobre economia..., a práxis já em marcha de outra economia fundada na cooperação e na solidariedade e a antevisão de uma outra globalização, que valoriza cada pessoa, cada cultura e cada povo, buscando um projeto comum de Humanidade a partir da valorização e da complementaridade das diferenças”. O Secretário Geral do Conselho Mundial de Igrejas, Pastor Samuel Kobia, resumia assim o tema e o propósito da IX Assembléia do Conselho, realizada em Porto Alegre, neste mês de fevereiro: “Transformar o mundo juntos”. O pequeno mundo do próprio coração, do próprio lar, da vizinhança, e o grande mundo da política e da economia e das instituições internacionais. Outra ONU é possível e necessária...

Já é consenso universalizado que só haverá paz no mundo se há paz entre as religiões. E que só haverá paz entre religiões se há diálogo entre as religiões. Um diálogo inter-religioso, porém, que seja gerador de Humanidade. Porque não se trata de sentar as religiões numa tertúlia narcisista e asséptica fora do mundo real da pobreza, da fome, da guerra, do racismo, da marginalização, do medo. O conteúdo axial desse diálogo inter-religioso há de ser também humanizar a Humanidade, em nome de Deus. Nosso João Maragall, o grande poeta humano-humanista da Catalunha, formulava lucidamente um pressuposto de toda fé religiosa:

“Home sóc i és humana ma mesura
per tot quant pugui creure i esperar”

(“Homem sou e é humana a minha medida
para tudo quanto eu possa crer e esperar”).

Para a nossa fé cristã o próprio Deus se encaixou na medida humana do homem Jesus de Nazaré. Infelizmente, durante séculos, e ainda hoje, as religiões vêm sendo, com demasiada freqüência, fundamentalismo, divisão e até guerra. É hora de crer em plural unidade no Deus da vida e do amor e de praticar a religião como justiça, serviço e companhia. Um Deus que separa a Humanidade é um ídolo mortífero.

Essa tarefa primordial e comum de humanizar a Humanidade se faz praticando a proximidade. O Evangelho de Lucas (Lc 10, 25-37) nos oferece a parábola paradigmática para essa práxis humanizadora. O mestre da lei responde corretamente à pergunta de Jesus sobre os mandamentos. Sabia o catecismo, pelo menos em sua letra. Mas “para justificar-se” o doutor da religião pergunta por sua vez: “E quem é o meu próximo?”. A resposta de Jesus é desconcertante e provocadora; para o doutor da lei, para todo o povo que ouve “naquele tempo” e também para nós que a escutamos hoje, aqui. Próximo é aquele ou aquela de quem eu me aproximo, e por primeiro os tombados no caminho, as pessoas à margem, as mulheres violentadas e submetidas, os emigrantes suspeitos, os estranhos de quem prefiro nem saber, ocupado como estou nos meus negócios ou talvez com o meu culto...

Eu me devo fazer próximo descobrindo o próximo, buscando-o, acolhendo-o, dando e doando-me em serviço dele. Sem fazer “acepção de pessoas”. Sem medo de me contaminar com um samaritano heterodoxo.

Somente amo ao próximo na medida em que saio, livre, aberto, solidário, ao encontro do próximo, aproximando-me dele, aproximando-o de mim.

Não se humaniza a Humanidade com máquinas e formulações (úteis a seu tempo e com o devido modo), mas com a aproximação humana de cada um e cada uma, de cada pessoa e de cada povo. Humanizar a Humanidade praticando a proximidade. A Teologia da Libertação tem nos recordado que a verdadeira ortodoxia se verifica na ortopraxis. O próprio ser de Deus “consiste em estar amando”, nos diz no Novo Testamento a primeira carta de João (Jo 4,8.16).

Ter saído da Catalunha, da Espanha, da Europa, passar por África e vir morar definitivamente neste brasileiro Mato Grosso desta Nossa América me tem universalizado a alma. E o contato apaixonado com a causa indígena e a causa negra tem me ajudado a redescobrir a identidade das pessoas e dos povos como alteridade e como complementaridade. Aproximar-me “do poder dos sem poder” (Václav Havel), na opção pelos pobres, no movimento popular, nas comunidades eclesiais de base e nas pastorais sociais, despertou-me definitivamente para a indignação e o compromisso; e também para a esperança.

Agradecendo de coração este Premi Internacional, quero pedir a minha Catalunha que continue sempre aberta ao mar; que, do alpendre da casa solarenga (des de l’eixida pairal), se abra sempre mais ao infinito mundo. Dentro e fora de casa; com “els altres catalans” e com os emigrantes que vão chegando e com toda a Humanidade. Sendo ela, livre, justa, humanizada e fazendo-se proximidade de todos os povos da terra. “La clau i la lletra” da escultura do mestre Tàpies é também uma parábola de abertura e de comunicação; chave para abrir, letra para falar.

Humanizemo-nos sempre mais, humanizemos sempre, praticando a proximidade.

Obrigado.
Pere Casaldàliga
São Félix do Araguaia, 9 de março de 2006

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