terça-feira, 28 de outubro de 2008

Chame-me pelos meus nomes verdadeiros (Thich Nhat Hanh)

Em Plum Village, onde vivo na França, recebemos muitas cartas dos campos de refugiados de Cingapura, da Malásia, Indonésia, Tailândia e das Filipinas. Centenas a cada semana. E muito triste ler essas cartas, mas temos de fazê-lo, temos de nos manter em contato. Fazemos o possível para ajudar, mas o sofrimento é tamanho que às vezes desanimamos. Dizem que metade dos refugiados que fogem em barcos morre no mar. Só metade chega às costas do sudeste da Ásia, e mesmo nesse caso eles podem não estar em segurança.

Muitas meninas, dos refugiados em barcos, são violentadas por piratas. Muito embora as Nações Unidas e muitos países tentem ajudar o governo da Tailândia a acabar com essa pirataria, os piratas continuam a infligir muito sofrimento aos refugiados em barcos. Um dia recebemos uma carta de um refugiado que nos contava a história de uma menina num pequeno barco que foi violentada por um pirata tailandês. Ela só tinha doze anos. Jogou-se no oceano e morreu afogada.

Quando você ouve uma história dessas pela primeira vez, você sente raiva do pirata. Naturalmente toma o partido da menina. A medida que examinar o assunto com maior profundidade, verá tudo de um modo diferente. Se você tomar o partido da menina, é fácil. Basta pegar uma arma e matar o pirata. No entanto, não podemos agir assim. Na minha meditação, vi que, se eu tivesse nascido na aldeia em que o pirata nasceu e tivesse sido criado como ele foi, haveria uma grande probabilidade de que eu me tornasse pirata também. Vi que muitos bebês nascem nas costas do golfo do Sido, centenas a cada dia. Se os educadores, os assistentes sociais, os políticos e outras pessoas não fizerem algo para mudar sua situação, daqui a vinte .e cinco anos uma quantidade deles vai ser pirata. Isso é líquido e certo. Se você ou eu nascêssemos hoje numa daquelas aldeias de pescadores, dentro de vinte e cinco anos poderíamos nos tornar piratas. Quem pega a arma e mata o pirata está matando a todos nós, porque todos nós até certo ponto somos responsáveis por esse estado de coisas.

Depois de uma longa meditação, escrevi o seguinte poema. Nele, há três pessoas: a menina de doze anos, o pirata e eu. Será que podemos olhar um para o outro e nos reconhecer no outro? O título do poema é "Chame-me pelos meus nomes verdadeiros, por favor", porque eu tenho muitos nomes. Sempre que ouço um desses nomes, tenho de dizer, "Sim".

Não diga que parto amanhã
porque hoje mesmo ainda chego.

Olhe bem: chego a cada instante
para ser o botão num ramo na primavera,
para ser o pequeno passarinho,
de asas ainda frágeis,
aprendendo a cantar o meu novo ninho,
para ser a lagarta no coração da flor,
para ser a jóia que se esconde na pedra.

Chego ainda para rir e para chorar,
para temer e esperar.
O ritmo do meu coração é o nascimento
e a morte de tudo que está vivo.

Sou a efemérida que se metamorfoseia à flor d’água
e sou a ave que, quando vem a primavera,
chega a tempo
de comer a efemérida.

Sou a rã que nada feliz na água limpa de um lago,
e sou a cobra que,
em silenciosa aproximação,
vem se alimentar da rã.

Sou a criança de Uganda, só pele e osso,
com as pernas finas como bambus,
e sou o traficante de armas que vende
a morte para Uganda.

Sou a menina de doze anos,
refugiada num pequeno barco,
que se atira ao mar depois de ser violentada
por um pirata,
e sou o pirata, com o coração ainda incapaz de ver
e de amar.

Sou um membro do politburo,
com muito poder nas mãos,
e sou o homem que tem de pagar sua "dívida de sangue"
ao seu próprio povo,
morrendo lentamente num campo de trabalhos forçados.

A minha alegria é como a primavera,
tão doce que faz brotar as flores
em todos os caminhos da vida.
A minha dor é como um rio de lágrimas,
tão forte que enche os
quatro oceanos.

Chame-me pelos meus nomes verdadeiros,
por favor,
para que eu possa ouvir de uma só vez todo o meu pranto
e todo o meu riso,
para que eu veja que a minha alegria
e a minha dor
são uma só.

Chame-me pelo meus nomes verdadeiros,
por favor,
para que eu desperte,
e para que a porta do meu coração possa
ficar aberta,
a porta da compaixão.

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