quinta-feira, 30 de outubro de 2008
A dura vida de quem bebe guaraná (João Ubaldo Ribeiro)
Todo mundo, pelo menos todo mundo com quem converso, sabe que tive problemas com álcool e, de certa forma, sempre terei, porque ele é meu inimigo permanente. Saiu até minha cara toda inchada na capa de uma revista, apareci igualmente inchado e meio bêbedo num programa de tevê em que eu era o assunto e, quando ia falar no sofrimento que estava enfrentando, as luzes se apagaram. Todo mundo, do Bial, que me entrevistava, ao pessoal da equipe, ficou impressionado, há quem até hoje ache que foi intencional. E as pessoas não se esquecem do passado, mas são gentis, ao se referirem ao assunto.
— E a saúde, como vai? — indagam sempre, me dando um olhar de avaliação.
A pergunta é a forma codificada de saber se eu continuo um pau-d’água e é num clima de alívio e satisfação (desgosto somente nuns poucos) que ressoa minha resposta de que a saúde vai bem. Belas notícias e, aliás, minha aparência está muito boa, estou uns dez anos remoçado. Alguns, talvez em maior número do que eu penso, não acreditam, mesmo porque compareço ao boteco com regularidade todos os sábados e domingos. Faço parte de uma roda de chopistas de responsa, alguns raros uisquistas leves e um solitário cachacista, sofisticado e morigeradíssimo, que bebe um copinho somente e nem todo fim de semana. O pessoal manda ver e eu também, só que guaraná diet. No meu copo parece que tem uísque, porque o guaraná é com gelo e sem aquela abominável rodela de laranja que aqui no Rio resolveram que acompanha obrigatoriamente guaraná.
Poderia dizer, para valorizar meu comportamento, que faço um esforço de vontade para resistir ao álcool, mas não faço. Creio que sei o que houve comigo, mas tenho certeza de que não estou sendo egoísta, ainda mais em assunto tão sério quanto este, quando digo que foi por uma via muito pessoal, que na verdade não posso dividir com ninguém, ou quase ninguém. O fato é que, tendo passado quase toda a vida adulta centrado de alguma forma no álcool, com tudo de prazeroso de uma forma ou de outra ligado à bebida, embora negasse minha condição de alcoólatra até que fui forçado a reconhecê-la, não sinto falta dele. Não faço, honestamente, força para não consumi-lo. Simplesmente não quero mais, é como se meu corpo e meu espírito o rejeitassem — quem quiser que explique como quiser.
Sempre procurei evitar hipocrisia e recusei-me a agir hipocritamente em relação ao problema. Falei nele abertamente, dividi minha experiência com outros doentes e suas famílias, que também costumam passar o diabo por causa deles. Internei-me para tratar-me em regime, digamos, carcerário, freqüentei os Alcoólicos Anônimos, fui a uma clínica no interior de São Paulo, submeti-me a tratamento psiquiátrico, vivi um pesadelo horrendo. Mais ou menos oito anos, com um de abstinência intercalado, após o qual pensei, burramente, tornar-me um “bebedor social”, resolução que só subsistiu por algumas semanas. Cheguei a ter pancreatite e quase morrer — quinze dias numa unidade de tratamento semi-intensivo e mais cinco de hospital comum. Depois disso tudo, ainda continuei a enfiar o pé na jaca, até que, um belo dia, me veio a graça — só posso usar esta palavra — e, ao amanhecer, pensei que ia tomar a talagada habitual já às seis horas da manhã e não tomei, perdi de vez a vontade. Ou, pelo menos, perdi até hoje e não penso em voltar a beber nada, me dá até uma certa repulsa. Isto, é claro, não se estende à bebida dos outros, nem mesmo à dos bebedores extremados, contanto que não fiquem chatos ou agressivos. Só deixei de dar entrevistas sobre o assunto quando me transformaram numa espécie de alcoólatra-padrão e bastava alguém embriagado envolver-se numa encrenca para um repórter querer me entrevistar. Tive que passar a responder que não era o Pinguçólogo Geral da República e fossem procurar outros.
Para mim, a vida ficou extraordinariamente melhor. Quem pode beber, sabendo desfrutar do que a bebida tem de bom e sem permitir que ela lhe seja ruinosa, que beba. Eu não posso e tenho a felicidade de não me ressentir disso. Mas a fama criada é difícil de erradicar e, como eu disse, tem muita gente que não acredita. Às vezes é meio chato. No boteco mesmo, um cavalheiro desconhecido passou certa feita por minha mesa, me viu tomando meu guaraná e declarou que me admirava porque, diabético como eu (não sou diabético, nem pareço ter tendência), ele também bebia o uísque dele à vontade. Respondi que era guaraná e ele, para provar que eu sou um farsante, enfiou o nariz no meu copo, fazendo uma caprichada lavagem nasal, que me obrigou a pedir outro, porque tenho objeções a ingerir lavagem nasal.
Em outros ambientes é freqüente que aconteçam coisas parecidas e, faz poucos dias, numa festa, quase tenho de brigar porque um convidado não se conformava que eu estivesse bebendo guaraná e outro insistiu que eu tomasse pelo menos um vinhozinho, quando eu recuso até bombom recheado de licor ou sorvete de passas ao rum. E sofro um pouco com outras coisas, porque, nas raras festas a que compareço, não só os garçons costumam estranhar que eu peça guaraná, como o servem na mesma bandeja meteórica em que trazem o uísque dos companheiros. O resultado é que os outros passam um tempão bebericando e eu consumo minha dose homeopática de guaraná em no máximo cinco minutos, tendo que realizar verdadeiras expedições para conseguir outra. Agora tomei uma providência. Vou a festinhas levando um pacote de latas de guaraná, que conservo a meu lado e consigo acompanhar as libações alheias de forma abstêmia e farta. Não é fácil fugir da norma, mas a gente, com inventividade e persistência, consegue. Brindemos.
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Foto: A ilustração desse texto é cena do filme “Língua - Vidas em português”, de Victor Lopes, em que aparecem João Ubaldo, Clóvis e este editor, Paulo Afonso, no boteco “Flor do Leblon”, em 2001.
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