terça-feira, 11 de novembro de 2008

Os Doze Passos de Deus (Philip Yancey)



(texto extraído das páginas 51 a 55 do seu livro “Igreja, por que me importar?)


Certa vez visitei uma "igreja" que consegue, sem sede denominacional ou equipe paga, atrair milhões de membros dedicados toda semana. Tem o nome de Alcoólicos Anônimos. Fui participar de uma reunião a convite de um amigo que acabara de confessar seu problema de alcoolismo para mim. "Venha comigo", disse ele. "Acho que você terá uma idéia de como era a Igreja Primitiva".

À meia-noite de uma segunda-feira entrei numa casa um tanto mal cuidada que já tinha sido usada para seis outras reuniões naquele dia. Fumaça de cigarro pairava no ar como nuvens de gás lacrimogêneo, fazendo meus olhos arderem. Não demorou, contudo, para eu entender por que meu amigo tinha feito a comparação com a Igreja Primitiva.

Um político bem conhecido e vários milionários de destaque misturavam-se livremente com desempregados que desistiram de estudar e jovens com marcas de agulhas nos braços. As apresentações eram mais ou menos assim: "Oi, meu nome é João e sou alcoólatra e viciado em drogas". Imediatamente todos diziam em voz alta e calorosa, "Oi, João!"

A "hora de compartilhar" funcionava como as definições que há nos livros sobre grupos pequenos, marcado por escuta compassiva, respostas calorosas, e muitos abraços. Cada pessoa que lá estava dava um relatório pessoal de seu progresso na luta contra o vício. Rimos muito, choramos muito. Acima de tudo, os membros pareciam gostar de estar juntos de gente que via a pessoa autêntica por trás das fachadas. Não havia razão para não ser honesto: todo mundo estava no mesmo barco.

Os Alcoólicos Anônimos (AA) não possuem propriedade, não têm sede, nem centro de comunicações, nenhuma equipe paga e nada de consultores de investimentos que viajem pelo país em seus jatinhos. Os fundadores dos AA fizeram salvaguardas que matariam qualquer coisa que levasse à burocracia, porque criam que o programa só daria certo se permanecesse no nível mais básico e íntimo: um alcoólatra que dedique sua vida a ajudar a outro. No entanto a dinâmica dos AA provou ser tão eficiente que existem 250 outros diferentes tipos de grupos de auto-ajuda de “doze passos”, desde Chocolatólatras Anônimos até grupos de pacientes de câncer, surgidos de imitação declarada das técnicas dos grupos de AA.

Os muitos paralelos que se pode traçar à Igreja Primitiva não são acidentes históricos. Os fundadores dos AA eram cristãos que insistiam que a dependência de Deus fosse parte essencial do programa. Na noite em que assisti a reunião, todo mundo na sala repetiu em voz alta os doze passos, que assume total dependência de Deus para obtenção de perdão e força. (Os membros agnósticos podem empregar o eufemismo "Poder Superior", mas depois de um tempo isso parece sem graça e impessoal e eles geralmente voltam a dizer "Deus").

Meu amigo admite livremente que para ele o movimento Alcoólicos Anônimos substituiu a igreja, e este fato por vezes o deixa desconcertado. "Os grupos de alcoólicos anônimos emprestam a sociologia da igreja, juntamente com alguns de seus conceitos e palavras, mas não possuem uma doutrina que os sustente," ele diz. "Sinto falta disso, mas estou tentando sobreviver, e os AA me ajudam muito mais nessa luta do que qualquer igreja local". Outros no grupo explicam sua resistência eclesiástica contando histórias de rejeição e julgamento. Uma igreja local é o último lugar em que teriam coragem de ficar em pé e declarar "Olá, meu nome é João. Sou alcoólatra e viciado em drogas".

Para esse amigo, a imersão nos Alcoólatras Anônimos significou salvação no sentido mais literal. Ele sabe que uma escorregada pode - na verdade o fará - mandá-lo para uma sepultura prematura. Mais de uma vez seu parceiro nos AA atendeu seu telefonema às quatro da madrugada e o encontrou cabisbaixo, sob a luz estranha de um desses restaurantes que abrem a noite toda, e ficou ali, com ele, acompanhando seu esforço por escrever num caderno - como um aluno que estivesse de castigo - a frase: "Deus me ajude a vencer os próximos cinco minutos”.

Saí daquela "igreja da meia-noite" fortemente impressionado, mas também preocupado porque os Alcoólicos Anônimos estão suprindo uma necessidade que a igreja não está suprindo - ao menos, não, para esse meu amigo. Pedi que ele me dissesse a única qualidade que estava faltando na igreja local e que o grupo AA lhe oferecera. Ele fitou sua xícara de café por longo tempo, vendo-o esfriar. Eu esperava ouvir uma palavra como "amor" ou "aceitação" ou, conhecendo bem os valores desse amigo, quem sabe, "anti-institucionalismo". Em vez disso ele disse baixinho uma única palavra: “dependência”.

"Ninguém consegue vencer por conta própria - não foi por isso que Jesus veio?" - ele explicou. "No entanto a maioria das pessoas da igreja dá um ar de piedade ou superioridade auto-satisfeita. Não sinto que conscientemente dependam de Deus ou uns dos outros. Suas vidas parecem estar todas certinhas. Quando um alcoólatra vai à igreja ele se sente inferior e incompleto". Continuou sentado em silêncio por um tempo até que um sorriso começasse a marcar seu rosto. "Engraçado", disse finalmente, "O que eu mais odeio em mim, meu alcoolismo, foi a única coisa que Deus usou para trazer-me de volta a Si. Por causa disso, sei que não sobrevivo sem Deus. Tenho de depender d'Ele para viver cada dia, e todos os dias. Talvez seja esse o valor redentivo do alcoolismo. Talvez Deus esteja chamando a nós os alcoólatras para ensinar aos santos o que significa depender de Deus e de sua comunidade sobre a terra".

A igreja da meia-noite de meu amigo ensinou-me a necessidade de humildade, honestidade total e dependência radical - dependência de Deus e de uma comunidade de amigos compassivos. Ao pensar nisso, pareceu-me que essas qualidades eram exatamente as que Jesus tinha em mente quando fundou Sua Igreja.

De acordo com o historiador Ernest Kurtz, os Alcoólicos Anônimos surgiram de uma descoberta feita por Bill Wilson em seu primeiro encontro com o Doutor Bob Smith. Por conta própria, Bill tinha conseguido manter-se sóbrio por seis meses, até que viajou para outra cidade e um negócio não deu certo. Deprimido, andando pelo saguão de um hotel, ouviu os sons conhecidos de risadas e gelo tilintando nos copos. Dirigiu-se ao bar, pensando "Preciso de um trago".

De repente veio-lhe um novo pensamento que o fez parar: "Não, não preciso de um trago - preciso de outro alcoólatra!" Foi até os telefones do saguão e começou a seqüência de telefonemas que o colocaram em contato com o Dr. Smith que viria a ser o co-fundador de Alcoólicos Anônimos.

A igreja é o lugar onde posso dizer, sem vergonha alguma: "Não preciso pecar. Preciso de outro pecador". Quem sabe, juntos, possamos nos ajudar a prestar contas um ao outro e nos manter no caminho certo"!

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